Meio Ambiente
“Grilagem organizada” ameaça biodiversidade e comunidades do Matopiba
A expansão da fronteira agrícola no cerrado do Maranhão, Tocantis, Piauí e Bahia, região conhecida como Matopiba, envolve uma série de ilegalidades. A afirmação consta no estudo Legalizando o ilegal, lançado na semana passada pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que estabelece conexões entre grilagem de terras públicas, desmatamento e expropriação de territórios tradicionais.
A expansão da fronteira agrícola no cerrado do Maranhão, Tocantis, Piauí e Bahia, região conhecida como Matopiba, envolve uma série de ilegalidades. A afirmação consta no estudo Legalizando o ilegal, lançado na semana passada pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que estabelece conexões entre grilagem de terras públicas, desmatamento e expropriação de territórios tradicionais.
O documento, elaborado com o apoio de organizações que integram a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, mapeia e denuncia as irregularidades do avanço do agronegócio na região a partir da análise de legislações fundiárias e ambientais sobre terras públicas devolutas estaduais.
Segundo explica Maurício Correia, da coordenação geral da AATR, a expansão da fronteira agrícola por meio da “grilagem organizada” se dá pela conversão de áreas de posse em propriedade por meio de papéis falsos e pelo consequente aumento da concentração fundiária e áreas destinadas à produção de grãos.
A partir de dados do Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006 e 2018, foi possível constatar que imóveis rurais do agronegócio, que haviam sido declarados como áreas de posse, ou seja, sem o documento de propriedade do território em 2006, foram declarados como propriedade em 2018.
No mesmo intervalo de tempo, o estudo identificou um aumento de áreas acima de 10 mil hectares e a diminuição em 17% do número de estabelecimentos rurais. Ou seja, um número menor de proprietários acumularam mais terras. É a chamada concentração fundiária.
Esse processo só é possível, aponta Correia, por meio da fragilização institucional e jurídica que está há décadas em curso na região, formado, em grande parte, por terras devolutas – terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que não integram patrimônio particular.
“Legislações têm sido feitas especialmente para enquadrar esses novos latifúndios criados a partir da expansão da fronteira. Temos imóveis rurais que vão de 10 mil a 400 mil hectares, que não se justificam do ponto de vista da legislação. Esses imóveis não têm como se enquadrar na destinação de terras devolutas”, afirma o coordenador da AATR.
“Como não dá para regularizar pelo Estado, esses grupos econômicos que adquiriram as terras vão até o cartório e registram como se fossem terras privadas. Um registro ilegal”, acrescenta.
De acordo com a Constituição Federal, a prioridade é destinar as terras devolutas para fins de reforma agrária e para comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas e geraizeiros.
Legislações fragilizadas
A segunda parte do estudo explica como governos e legisladores criam mecanismos que facilitam a transferência de terras públicas para fazendeiros.
Entre eles está o chamado “marco temporal”, que legaliza a grilagem considerando válidos documentos de propriedades públicas a partir de uma determinada data, e ações de reconhecimento de domínio, que reconhece como válidos títulos e registros de imóveis rurais que não cumprem requisitos legais.
Na Bahia, região de fronteira mais antiga do Matopiba, a lei estadual 3442/75, conhecida como a lei da grilagem baiana, determinou a possibilidade do Estado da Bahia reconhecer o domínio de títulos de propriedade registrados até 11 de dezembro de 1960, mesmo que sua cadeia sucessória não chegue até a transferência pelo patrimônio público.
“Com a inclusão deste simples dispositivo, milhões de hectares de terras devolutas irregularmente registradas passaram ao patrimônio privado, sem nenhum controle quanto à dimensão da área e o perfil de quem acessa a terra”, destaca o estudo.
No Maranhão, foram consideradas particulares as terras adquiridas de “boa fé” e registradas no Cartório de Registro de Imóveis até 17 de julho de 1969. No Piauí, as leis estaduais nº 6.709/2015 e 7.294/2019 viabilizaram a destinação de terras devolutas a particulares, inclusive com a possibilidade de venda.
As leis violam a própria Constituição Estadual, que determina a destinação exclusiva de terras públicas devolutas para a reforma agrária e proteção dos ecossitemas.
Já no Tocantins, a expedição de título confirmatório de domínio foi inserida pela lei nº 3.525/201, que valida os títulos paroquiais, registros antigos feitos por volta de 1850, quando as propriedades ou as posses rurais eram cadastradas somente para fins estatísticos nas Paróquias de Terras.
Porém, segundo denuncia a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, ao longo desse processo não há uma investigação da origem das posses, permitindo a regularização de terras comuns por particulares.
Territórios tradicionais
Ainda que haja a determinação de que o reconhecimento de domínio não é aplicável em imóveis localizados em reservas indígenas ou quilombolas demarcados, é um risco grande para todas as áreas que estão em processo de demarcação ou que ainda não foram demarcadas.
Maurício Correia reforça que desde 1946, a Constituição Federal proíbe a transferência de mais de 10 mil hectares de terras devolutas para empresas ou indivíduos. Hoje a limitação é de 2,5 mil hectares.
“Como é possível haver tantos latifúndios maiores do que isso nessa região? Só é possível a partir do registro ilegal. Os governos deveriam promover uma política de arrecadação dessas terras, de identificar onde estão as terras devolutas e separá-las, é fundamental. O que é terra pública precisa observar a destinação constitucional: proteção dos ecossistemas, alinhamento com o plano nacional da reforma agrária e regularização fundiária dos territórios de povos e comunidades tradicionais”, argumenta.
O desmonte das leis protetivas em nível federal criam um cenário preocupante. “Isso estimula que novas ondas de grilagem continuem acontecendo porque há sempre a expectativa de que, mais na frente, o poder político dos estados, pressionados pelo agronegócio, vão fazer novas legislações para legalizar as grilagens”, adiciona o advogado.
Outras brechas
Ainda de acordo com o estudo, o Novo Código Florestal também trouxe elementos que incrementaram as possibilidades de grilagem de terra. É o caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR) criado com o objetivo de organizar os registros ambientais de todos os imóveis rurais brasileiros, identificando as áreas desmatadas, as áreas de proteção permanente e as áreas de reserva legal.
Como o CAR tem caráter autodeclaratório e os Estados não analisam criteriosamente sua validação, a AATR considera que ele acaba sendo um instrumento que favorece e facilita a grilagem.
O mecanismo pode estar sendo utilizado, por exemplo, para declarar imóveis e estabelecimentos agropecuários inexistentes ou para expansão de áreas dos imóveis.
“O Cadastro Ambiental Rural tem sido comumente usado em processos judiciais contra comunidades que fazem uso de seus territórios, seja coletiva ou individualmente. Essas áreas estão sendo cadastradas sem que as pessoas que de fato detêm a posse tenham conhecimento e depois isso vira ações judiciais para expulsar essas mesmas comunidades e famílias”, critica Correia, adicionando que o Código Florestal tornou legal 58% dos desmatamentos ilegais anteriores a ele.
Com a valorização das terras, o desmatamento e o conflito com as comunidades locais fecham o ciclo da institucionalização da grilagem.
Consequências diretas
Valéria Pereira, da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, afirma que as comunidades locais enfrentam um cercamento por parte dos latifundiários e presenciam cotidianamente a degradação do bioma, a perda da biodiversidade e a consequente escassez dos elementos que possibilitam seu modo de vida tradicional.
“As comunidades no Cerrado têm suas áreas nos ‘baixões’ mas as áreas da Chapada, coletivas, de uso comum, estão sendo invadidas pelo agronegócio, principalmente pela monocultura da soja. É um pacote de destruição. O desmatamento, as queimadas e o uso intensivo de agrotóxico que impactam diretamente as famílias no entorno, que estão encurraladas pelas lavouras de soja”, lamenta Pereira.
Neste ano, entre janeiro e agosto, foram registrados 21.460 focos de queimadas no Cerrado, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
“O fogo tem sido usado pelo agronegócio como uma arma contra as comunidades. Uma arma para grilar terras. Usam o fogo para devastar e depois jogam semente de capim para dizer que a área é de posse de determinada pessoa”, explica a integrante da articulação.
Para ela, a ausência de investimento nas políticas de fiscalização e controle dos incêndios é a forma dos governos estaduais e federal deixarem a “boiada passar” no Matopiba.
A contaminação das águas do Cerrado, conhecido popularmente como “caixa d’água do Brasil” e berço de importantes rios do país, também preocupa. Além da larga utilização de agrotóxicos, frisa Pereira, a retirada de grande quantidades de água para irrigação de monocultivos compromete o nível dos rios da região.
Recomendações
O estudo Legalizando o ilegal apresenta ainda uma série de orientações em defesa do bioma e dos povos tradicionais que neles habitam.
Entre elas, a criação de mecanismos de participação social para a formulação e execução de políticas fundiárias e ambientais; a prioridade na demarcação de territórios coletivos, sejam eles indígenas, quilombolas ou de geraizeiros; a proteção das regiões microprodutoras de água; mecanismos de fiscalização e controle sobre os cartórios; análise minuciosa de todos os títulos de domínio acima de 2.500 hectares, entre outros.
Lu Sudré, edição Rodrigo Chagas
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